Publicado por: Battista Soarez | junho 1, 2012

MUNDO EVANGÉLICO

E S P I R I T U A L I D A D E

COM UNÇÃO OU SEM NOÇÃO?

 

Pr. BATTISTA SOAREZ

 

 

Em alguns templos evangélicos, unção espiritual (obtida por meio do estudo da Bíblia) é confundida com movimentos estranhos e atitudes imaturas

Ramon, um amigo muito querido, foi quem sugeriu o tema deste artigo. Ele não me disse o motivo da sua sugestão. Mas confesso que gostei. Muito! E explico o porquê: é que a religiosidade atual é deliberadamente cômica. Tão cômica que, a todo quando, ela vive fazendo a gente ri e até soltar gargalhadas. Mas, às vezes, ela provoca crises de mau humor e raiva.

Para comprovar que isso é pura verdade, basta você ir a um culto pentecostal com visão um pouco diferente dos demais para logo ouvir o zunzum dos murmúrios: “misericórdia, irmão”; “tá amarrado, irmã”. Outros exageram um pouco na comportamentalidade, na tatuagem e no “vai-e-vem” das idéias religiosas. 

A espiritualidade da unção sem noção leva o indíduo à loucura de achar-se portador de poderes mirabolantes

E parece que, na inteligência espiritual deles, falta criatividade para dizer alguma coisa com sentido. Sua inteligência espiritual não consegue produzir nada além desses jargões contaminados de chatices e gracejos imbecis. Mas, às vezes, a falta de criatividade igrejeira é rica de comicidade. Faz a gente ri à beça. As pessoas se divertem. Obviamente. 

1 Uma loucura histórica 

Erasmo de Rotterdam (1469-1536) escreveu Elogio da Loucura, no qual criticava atitudes transloucadas de cristãos medievais. Um livro que, à época, mereceu fortes críticas e admoestações vivazes até mesmo de amigos como, por exemplo, de seu estimado amigo Martin van Dorp. Professor de teologia, muito culto, e reitor do Colégio do Espírito Santo, van Dorp, ao ler Elogio da Loucura, escreveu uma carta a Erasmo na qual dizia substancialmente: 

Tu, cuja glória é celebrada tanto pelos eruditos como pelos simples, por que escreveste tais coisas, próprias para irritar tantas pessoas e fazer-te detestar? Por que provocar inutilmente o escândalo dos fracos? No final, sobretudo, a atribuição da loucura do Cristo, e da demência aos que aspiram ao Reino dos Céus, ultrapassa em indecência todas as iniciativas do entendimento. Porém, mais que a todas as outras, é à confraria dos teólogos que enfureces. Desancando a preeminência que reivindicam, aviltas seu papel insigne na Igreja. Só há um meio de corrigi-lo: é escreveres agora, em contrapartida, um ‘Elogio da Sabedoria’. Graças à sutileza de tua arte, tudo ficaria consertado (BEAUDUIN, Édouard. Memórias de Erasmo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 168-9). 

Erasmo apenas respondeu: 

Mas, caro van Dorp, que importa a glória, termo oco, de um paganismo caduco, cujo vazio um cristão deve avaliar? De que ataques podem ser acusadas minhas declamações? Nenhuma pessoal, por certo, ao contrário de tantos escritores muitíssimo mais célebres. Nenhum nome jamais pronunciado por mim, nenhuma filípica (sátira acerba, discurso violento e injurioso que lembra os de Demóstenes contra o rei Felipe da Macedônia). Nada de minha pena poderia prejudicar ou ofender. Meu objetivo não era senão o mesmo do Manual do Militante Cristão: promover uma vida moral segundo o Evangelho. Mas quis dizer essa verdade evangélica brincando, castigar pelo riso, pelo bálsamo da graça e do prazer, como os médicos de Lucrécia, que colocavam mel na poção amarga que queriam administrar às crianças (BEAUDUIN, 1991, p. 169). 

Diante da pesada hermenêutica crítica do amigo, Erasmo diz que não é sua intenção vituperar a fé cristã. Mas que apenas queria ajudar os cristãos a fugir para fora da mediocridade moral que estava incomodando o espírito do mundo em nome do Cristo. “Se há tolices nos meus escritos ― disse ele ― são menos numerosas que as dos “grandes teólogos”, que argumentam entre si e

Para Erasmo de Rotterdam, a “sabedoria” evangélica às vezes é uma loucura que não tem percepção das coisas normais. A ausência de visão bíblica afasta o indivíduo cristão da verdadeira espiritualidade.

cruzam espadas por futilidades. Simplesmente adotei a máscara da Loucura e do bufão. Por que me censurar por escrever aquilo que todos os simples e ignorantes aplaudem nas farsas e comédias populares que zombam de padres, monges, mulheres e maridos? Quem se sentir atingido, pois que registre para si a tomada de consciência, e a dissimule se houver por bem, para não se trair”. 

Erasmo, por fim, questionou o fato de como alguém podia crer que ele injuriava a classe dos teólogos se ele tinha a mais autêntica veneração por ela? E de como poderia ser diferente se ele mesmo tinha a honra de pertencer à classe dos teólogos? Seriam os teólogos tão ignorantes e tolos a ponto de não compreenderem uma crítica que tinha um objetivo eficaz: fazer todos viverem a essência do Evangelho genuíno? 

Talvez a inquietação do meu amigo Ramon, em pleno século XXI, seja a mesma de Erasmo de Rotterdam no final do século XV e início do século XVI: por que teólogos, pastores, líderes e cristãos comuns se irritam quando falamos alguma coisa para o bem da fé inteligente, centrada no Evangelho verdadeiro, lapidado na integridade da cruz? 

Ramon é um simples comunicador de rádio. Não é, portanto, um teólogo. Mas é um cristão consciente de sua fé em Jesus Cristo. É o bastante para fazer dele um observador das coisas que fazem da fé cristã um evangeliquez grosseiro. Uma espiritualidade tosca e vazia de sentido. E carecente de inteligência. Pode-se ver, aí, uma espiritualidade plena de ignorância e incompetência, diria Erasmo. Se o mal denunciado os incomoda tanto, só pode ser pelo fato de os tais serem portadores dele pessoalmente. No item a seguir, você fará tal julgamento. 

2. Cair no Espírito ou espírito caído? 

            Imagine se Erasmo de Rotterdam aparecesse de repente, em nossos dias, e fosse convidado por Ramon para assistir a um culto neopentecostal desses quaisquer que acontecem por aí, nesses templos da fé evangélica. Onde o jovem radialista pudesse lhe mostrar gentes atordoadas, inebriadas pelo orgasmo da religião pentecostal, dizendo-se “cheias” do Espírito. Gentes caídas ao chão, inconscientes, falando coisa com coisa. Fanfarronando profecias tolas. Cheias de assombros apocalípticos. Mensagens assustadoras. Acusações grotescas em nome da fé. 

Não bastasse, jovens mocinhas bailando no púlpito, encenando suas coreografias sensuais. Levantando as pernas para o alto. Enquanto isso, outro grupo canta. Acompanhado por instrumentos irritantes. Tocados em altos decibéis. Senhoras e senhores rodopiando, fazendo gingados pouco diferentes das cenas que acontecem em terreiros de umbandas. Pulos estranhos. Batidas com os pés no chão mais estranhas ainda. Encenações de golpes no ar, como se na mão estivesse uma espada invisível. 

Minutos depois, o pregador começa a falar de coisas “mirabolantes”. De uma espiritualidade incrível. Que faz enriquecer. Prosperar. Ganhar muito dinheiro. O culto propagado por ele é uma espécie de bolsa de valores, onde os fiéis podem depositar “mil” e ganhar “milhões”. Onde a pessoa deixa todo o seu dinheiro no altar e, em troca, tem todos os seus problemas resolvidos.  Tanto que, nesses ambientes de pregação, a salvação eterna já não é tão

Essa coisa esquisita de cair no espírito é carente de uma explicação teológica convincente e sedenta de uma fundamentação bíblica mais clarificada

importante. A vinda de Jesus já não interessa mais. O paraíso é por aqui mesmo, na terra. Onde se podem ter mansões, carros de luxos e uma vida regalada. Então, o pregador grita. Pula. Ora em voz alta. Sopra. E derruba crentes com uma mera mágica do sopro. Em certos momentos, pessoas tremulam. Rosnam e recebem manifestações de espíritos demoníacos. Enquanto outros expulsam alguma coisa, gritando “sai, em nome de Jesus”. 

A espiritualidade sensual coreografada é celebrada como unção. Bem como os gingados macumbalhados. As quedas no Espírito. Os gritos estranhos. Os bufados espirituosos. Os sopros que contêm a mágica do “cair no espírito”. As levantadas de pernas. Os urros. As manifestações estranhas. Tudo é unção… unção… unção.

 ― O que você acha? ― perguntaria Ramon. ― É pura unção mesmo? Há alguma coisa de racional nisso tudo que a gente vê? 

― Amigo, acho que preciso voltar atrás e parabenizar a espiritualidade medieval que tanto critiquei ― diria Erasmo. ― Levando mais a fundo as razões, o que deploro é o mal de que hoje sofre a própria teologia da igreja. A igreja se neurotizou. A teologia pirou de vez. Caducou. Por fim temos, agora, uma espiritualidade que se viciou no “craque” da religião. A unção parece uma nevrose recuada em si mesma, inebriada no seu estado de consciência social. 

― E o que você diria, então, dessa espiritualidade generalizada do século XXI? ― perguntaria o jovem radialista.

 ― Nem imagine, meu rapaz ― Erasmo folhearia as páginas de suas memórias e passaria um filme na sua cabeça. ― As discussões ociosas dessa teologia “recente”, que o apóstolo Paulo chama de logomaquias (palavreado inútil), encobrem a voz dos profetas e apóstolos, bem como a voz do próprio Evangelho, que veneráveis “mestres” medievais, da minha época, confessaram-me nunca ter freqüentado.

 ― Ah, é? ― Ramon instigaria, franzindo a testa. ― Como você traduziria isso para gente? 

― Simples! Muito simples. Você percebe que a teologia antiga é desfigurada por essa outra teologia mascarada ao gosto do dia de hoje. Sem falar da baixeza da linguagem, da ignorância das letras (inclusive nas músicas), da inépcia nas línguas. As categorias de pensamentos intelectuais do mundo atual, em si respeitáveis porém humanas, pesam com toda força no espírito e criaram um descompasso em relação à filosofia de Cristo, onde há de fato os mistérios da Sabedoria eterna. 

― Você está dizendo que essa espiritualidade atual é meramente igrejeira e que, nela, não há inteligência alguma. Isso não é muito forte? 

― Não. Não. Não é. Essa falta de inteligência eclode na acusação que fazem de pessoas como nós, que defendemos o Evangelho puro e verdadeiro. Aquele de Mateus (capítulos 5, 6 e 7), combinando com João (capítulo 17). Eles defendem, pelo contrário, um evangelho contaminado de doutrinas individuais. E isso justifica o confuso crescimento de denominações evangélicas. A esperança cristã é uma loucura: os líderes criam suas próprias idéias doutrinárias, e depois eles mesmos as censuram. Sem pré-contabilizarem o prejuízo. Esse tipo de sabedoria é absurda e ridícula. 

Erasmo leciona que a “loucura” evangélica ― essa coisa de “unção” sem noção das coisas normais e equilibradas na movimentação da fé ― fabrica falsos sábios espirituais. “Sábios” em tudo. E essa “loucura” torna esses falsos sábios contentes consigo mesmos. Estes, labregos como são, deleitam-se com a aparência de sabedoria ― diz Erasmo. 

Segundo ele, um pensamento fixo da falsa sabedoria cristã é: “tenho direito às maiores homenagens, porque sou a verdadeira distribuidora da felicidade entre os humanos”. Aí, Erasmo de Rotterdam concluiria: “De fato, a vida dos homens não seria possível nem suportável sem miragens de ilusão e sonho, sem quimeras e utopias, quer dizer, sem loucura”. Para ele, “não há exceção, e até os que se acham sábios e se gabam de sê-los estão agindo como verdadeiros loucos. O que vejo é: amor-próprio [demasiado], egoísmo ferrenho, presunção, indiferença, lisonja, esquecimento, preguiça [intelectual], volúpia e leviandade” (id. p. 154). Fatuidade e vaidade cirandam nos arraiais evangélicos. Será que Erasmo tinha uma lente futurista, que o levou a fazer um raio-x perfeito da espiritualidade evangélica atual? 

3. Ser espiritual não é ser… 

            [Bem,] …imbecil, talvez, seja uma palavra muito forte para classificar alguém que sai por aí correndo atrás do vento (Eclesiastes 2.17) de “algo” sem sentindo, jurando de “pés juntos” que está recebendo o sopro do Espírito Santo. Que lástima! Salomão deu nome para isso: “Vaidade de vaidade ― disse o sábio pregador ― vaidade de vaidades, é tudo vaidade” (Eclesiastes 1.2). Vaidade espiritual, eu diria. 

           

Dizem que a idiotice produz a felicidade. Talvez isso explique a espiritualidade de alguns grupos religiosos do nosso tempo.

No momento em que eu absorvo a infeliz idéia de que o poder, a honra e a glória são minhas e não de Deus, estarei entrando numa cadeia de desconforto espiritual no meu relacionamento com Deus e com as pessoas. Quando isso acontece, eu começo a produzir idéias de autodefesa e auto-justificativas para os meus erros. Segundo, as pessoas adoecidas por esse tipo de espiritualidade funesta desenvolvem uma soberba revestida de cólera e traduzida como zelo religioso. Presunção, orgulho, egoísmo. 

Esses aspectos religiosos as levam a andarem à margem do verdadeiro Evangelho. A olharem para uns com psicastênico olhar de desprezo. E, para outros, com absoluto interesse e esperteza. Se afastam daqueles que necessitam realmente de hombridade e apoio cristão. E se aproximam daqueles dos quais podem arrancar alguma coisa: dinheiro ou possibilidade de se auto-projetarem. Tal espiritualidade evangélica é funesta e faz milhares de vítimas com desventura e desprezo. 

            Mas o que seria vaidade espiritual? Talvez uma… “aleluia, irmão”, que não representa absolutamente nada. Um louvor igrejeiro carregado de emoções carnais. Uma soberbice imbecil que narcisiza o próprio indivíduo num antipático culto à personalidade. Ufa! Tá cheio disso por aí. Há pastores e líderes bestas cuja soberba o conduz a um túnel escuro e obscuro, onde vão ter de se rebolar para explicarem ao Senhor da vida por que permitiram que o diabo plantasse nas suas mentes e nos seus corações brutais indiferenças contra o próximo. Por que se deixaram possuir pelo espírito de fofoquice e arrogância espiritual nas suas relações humanas. Por que esqueceram do conselho de Jesus que ordena: “ama o teu próximo como a ti mesmo”. 

Aqui em São Luís, por exemplo, tem um pastor que se deixou possuir por esse espírito de brutalidade espiritual [evangélica]. A fama e o sucesso rápido o lançaram na gaiola da presunção e da vaidade. Soberba, orgulho, egoísmo e idiossincrasia tornaram-se os principais sintomas da sua personalidade adoecida. Suas mensagens são recheadas de jargões idiotados, e de frases e pensamentos alheios pescados em livros de autores de sucesso. Sequer tem a humildade de dizer que tais frases de efeito e pensamentos livrescos não são dele. Mas ele prega como se os fosse. É plágio puro. 

Líderes assim estão à frente de grandes igrejas. Bajulando a uns e adoecendo a outros. Sempre alguma coisa sem sentido afeta, patologicamente, sua personalidade eclesiástica. Mas, para eles e para muitos do mundo evangélico, tudo é “unção”. Mesmo sem noção do que é realmente saudável, eles estão convencidos de que tudo é “unção”. O que é realmente vida em Deus está longe deles. De Erasmo (séc. XVI) a Ramon (séc. XXI), esta é uma história que não tem fim. Nem lógica. Mas acontece. E justifica por que o corpo de Cristo não tem o poder que deveria ter. Mas fica uma alerta: unção sem poder, é mera emoção e comoção.


Respostas

  1. Boa explanação querido Battista Soarez, que Deus continue abençoando tremendamente seu ministério, que nesse artigo, muitas vidas possam ser edificadas. Saiba que admiro muito seus livros e artigos.

    • Obrigado pelo comentário, Ramon. Todos os dias ouço seu programa. O pessoal do Projeto Nova Alcântara Ouve você também. Manda alô para eles.


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